“Hoje eu sou dona do meu negócio, é o que eu gosto, e para o futuro eu quero mais”, foi o que Leonor disse com o sorrisão enorme destacado no rosto e com as mãos negras enfiadas no caderno onde registrava satisfeita as vendas do dia. Fiquei muito instigada em perceber que alguma coisa muito importante havia se movimentado dentro dela. Aquela mulher que antes via o que ela fazia como um bico ou complemento de renda agora comunica sua identidade a partir de um novo lugar: empreendedora, dona do seu negócio.
Das vendedoras de alimentos nas ruas do Brasil desde o período colonial até as blogueiras negras da era digital, empreender sempre fez parte da trajetória da população afro-brasileira, ainda que esses fatos não venham acompanhados desse reconhecimento por parte da sociedade e sejam influenciados por uma visão mitológica, onde é reconhecido neste lugar a típica figura do poder do capital: o homem branco bem sucedido de terno e gravata. Descortinando o mito encontramos na realidade brasileira uma economia que é movimentada por 99,9% de microempreendedores. Sim, pessoas como Leonor que fazem a coisa toda acontecer ainda que não saibam disso.
“É necessário transformar o ecossistema empreendedor”
Acredito que a percepção da nossa identidade é o que orienta nossa forma de agir no mundo, é ela que nos define, para nós e para os outros. Leonor vende produtos na rua desde os 15 anos de idade, mas só agora depois de um encontro e reconhecimento da sua identidade como empreendedora, a experiência de empreender ganha nova potência trazendo o olhar dela para o futuro e para a desejo de realizar mais.
Observando a trajetória de afroempreendedores como a Leonor percebo que o despertar para esta identidade gera um poderoso encontro com o poder de criar e transformar a realidade a partir de si mesmos. Esse reencontro com a necessidade de ser e estar no mundo implica em sair de um lugar de negação de si, imposto pelas estruturas sociais, assumindo a identidade de quem propõe algo para o mundo impulsionado pelo desejo de realizar e realizar-se a partir de seus próprios valores e referências. Nesse movimento o próprio empreendedor passa a ser um referencial e isso tem impacto muito significativo na configuração da sua identidade e na construção de uma nova cultura empreendedora.
A incidência do afroempreendedorismo para quem consome também é muito significativa. Quantos anos levou para ser mais ou menos comum encontrarmos bonecas negras nas lojas? O empreendedor negro tem maiores condições de perceber as necessidades de um consumidor que também é invisibilizado pelo mercado, com isso tem condições de trazer novas propostas de consumo a partir da sua visão de mundo ampliando os acessos de serviços e produtos para essa população de uma maneira bem mais representativa.
A apropriação do empreender como “coisa de preta” e o surgimento de novos negócios com esta perspectiva promovem maior diversidade ao mercado, influenciando positivamente todo tecido social. É necessário transformar o ecossistema empreendedor disseminando a ideia de que todos podem empreender, construindo novos referenciais para este espaço, e viabilizando acessos para que o encontro com a poderosa identidade afroempreendedora seja possível.
*Crisfanny Souza Soares atua na educação de microempreendedores como coordenadora de projetos pela Aliança Empreendedora, é psicóloga, cantora, apresentadora e militante pela saúde da população negra.